ORIGENS DA FILOSOFIA

Das origens da Filosofia

Em construção!

A OBRA DE ARTE NA ERA DA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

Trata-se dos dois primeiros trechos da segunda versão do texto, iniciada por Walter Benjamin em 1936 e publicada em 1955.

"As nossas belas-artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época que se diferencia decisivamente da nossa, por homens cujo poder de acção sobre as coisas era insignificante quando comparado com o nosso. Mas o extraordinário crescimento dos nossos meios, a capacidade de adaptação e exactidão que atingiram, as ideias e os hábitos que introduzem anunciam-nos mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do Belo. Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos.
Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. É
de esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em termos mágicos".
Paul Valéry: Pièces sur l’art. Paris (s. data) pp. 103/104 ('La conquête de l'ubiquité").

PRÓLOGO
Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, este modo de produção estava ainda nos seus primórdios. Marx, orientou a sua análise de tal forma que ela adquiriu um valor de prognóstico. Recuou até às relações fundamentais da produção capitalista e apresentou-as de forma tal que elas explicitaram aquilo que, de futuro, se poderia esperar do capitalismo. Ficou explícito que dele seria de esperar, não só uma exploração crescentemente agravada do proletariado, como também, por fim, a criação de condições que tomariam possível a sua própria abolição.
A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infraestrutura, necessitou de mais de meio século para tomar válida a alteração das condições de
produção, em todos os domínios da cultura. Só hoje se pode indicar sob que forma isso sucedeu. A essas indicações colocam-se certas exigências de prognóstico. Mas estas exigências correspondem menos a teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de poder, para não falar da sociedade sem classes, do que a teses sobre as tendências de evolução da arte, sob as condições de produção actuais. A sua dialéctica nota-se tanto na superstrutura como na economia. Por essa razão seria errado subestimar o valor de luta de tais teses.
Eliminam alguns conceitos tradicionais – como a criatividade, a genialidade, o valor eterno e o secreto – conceitos cuja aplicação descontrolada (e actualmente dificilmente controlável) conduz ao tratamento de material factual num sentido fascista. Os conceitos seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados dos para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para formulação de exigências revolucionárias em politica de arte.
I
Por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre pôde ser imitado por homens. Tal imitação foi também exercitada por alunos para praticarem a arte, por mestres para divulgação das obras e, finalmente, por terceiros ávidos de lucro. Em contraposição a isto, a reprodução técnica da obra de arte é algo de novo que se vai impondo, intermitentemente na história, em fases muito distanciadas umas das outras, mas com crescente intensidade. Os Gregos conheciam apenas dois processos de reprodução técnica de obras de arte: a fundição e a cunhagem. Bronzes, terracotas e moedas eram as únicas obras de arte que podiam produzir em massa. Todas as outras eram únicas e não podiam ser reproduzidas tecnicamente. As artes gráficas foram reproduzidas pela primeira vez com a xilogravura e passou longo tempo até que, pela impressão, também a escrita fosse reproduzida. São conhecidas as enormes alterações que a impressão, a reprodutibilidade técnica da escrita, provocou na literatura. Mas à escala mundial, tais modificações são apenas um caso particular, ainda que extraordinariamente importante do fenómeno que aqui se observa. À xilografia juntam-se, no decorrer da Idade Média, a gravura em cobre e a águaforte, bem como a litografia no início do século XIX.
Com a litografia, a técnica de reprodução regista um avanço decisivo. O processo muito mais conciso, que diferencia a transposição de um desenho para uma pedra do seu entalhe num bloco de madeira, ou da sua gravação numa placa de cobre, conferiu, pela primeira vez, às artes gráficas a possibilidade de colocar no mercado os seus produtos, não apenas os produzidos em massa (como anteriormente) mas ainda sob formas todos os dias diferentes. A litografia permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. Começaram a acompanhar a impressão. Mas poucas décadas após a invenção da litografia, as artes gráficas foram ultrapassadas pela fotografia. Pela primeira vez, com a fotografia, a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva. Uma vez que olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala. O operador de cinema ao dar à manivela, no estúdio, pode acompanhar a velocidade com que o actor fala. Se o jornal ilustrado estava virtualmente oculto na litografia, também na fotografia o está filme sonoro. A reprodução técnica do som foi iniciada no fim do século passado. Os esforços convergentes fizeram antever uma situação que
Paul Valéry caracterizou, com a seguinte frase: "Tal como a água, o gás e a energia eléctrica, vindos longe através de um gesto quase imperceptível, chegam a no sãs casas para nos servir, assim também teremos ao nosso dispor imagens ou sucessões de sons que surgem por um pequeno gesto, quase um sinal, para depois, do mesmo modo nos abandonarem" (1). No início do século XX, a reprodução técnica tinha atingido um nível tal que começara a tornar objecto seu, não só a totalidade das obras de arte provenientes de épocas anteriores, e a submeter os seus efeitos às modificações mais profundas, como também a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos. Para o estudo deste nível, nada é mais elucidativo do que as suas duas diferentes manifestações – a reprodução da obra de arte e o cinema – e a sua repercussão retrospectiva sobre a arte, na sua forma tradicional.
II
Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa existência única, e apenas ai, que se cumpre a história à qual, no decurso da sua existência, ela esteve submetida. Nisso, contam tanto as modificações que sofreu ao longo do tempo na sua estrutura física, como as diferentes relações de propriedade de que tenha sido objeto (2). Os vestígios da primeira só podem ser detectados através de análises de tipo químico ou físico, que não são realizáveis na reprodução; os da segunda são objecto de uma tradição que deve ser prosseguida a partir do local onde se encontra o original.
O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade. Para averiguar a autenticidade de um bronze, pode ser útil proceder a uma análise de tipo químico, na sua patina, da mesma forma que, para verificar a autenticidade de determinado manuscrito medieval, pode ser útil a prova de que ele provém de um arquivo do século XV. O domínio global da autenticidade subtrai-se à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não só a esta (3).
Mas enquanto o autêntico mantém a sua autoridade total relativamente à sua reprodução manual, que, regra geral, é considerada uma falsificação, isto não sucede relativamente à reprodução técnica. Para tanto há um motivo duplo: em primeiro lugar, relativamente ao original, reprodução técnica surge como mais autónoma do que a manual. Na fotografia pode, por exemplo, salientar aspectos do original, que só são acessíveis a uma lente regulável e que pode mudar de posição para escolher o seu ângulo de visão, mas não são acessíveis ao olho humano ou, por meio de determinados procedimentos como a ampliação ou o retardador, registar imagens que pura e simplesmente não cabem na óptica natural. Este o primeiro aspecto. Além disso, em segundo lugar, pode colocar o original em situações que nem o próprio original consegue atingir. Sobretudo, ela toma-lhe possível o encontro com quem a apreende, seja sob a forma de fotografia, seja sob forma de disco. A catedral abandona o seu lugar para ir ao encontro do seu registo num estúdio de um apreciador de arte, a obra coral, que foi executada ao ar livre ou numa sala, pode ser ouvida num quarto.
As situações a que se pode levar o resultado da reprodução técnica da obra de arte, e que, aliás, podem deixar a existência da obra de arte incólume, desvalorizam-lhe, de qualquer modo o seu aqui e agora. Ainda que, de forma nenhuma, isto seja apenas válido para a obra de arte e corresponda, por exemplo à paisagem que, num filme, se desenrola perante o espectador atinge-se, através deste processo, um núcleo tão sensível do objecto de arte que uma vulnerabilidade tal não existe num objecto natural. É esta a sua autenticidade. A autenticidade de uma coisa é a suma de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. Uma vez que este testemunho assenta naquela duração, na reprodução ele acaba por vacilar, quando a primeira, a autenticidade, escapa ao homem e o mesmo sucede ao segundo; ao testemunho histórico da coisa. Apenas este, é certo; mas o que assim vacila, é exactamente a autoridade da coisa (4).
Pode resumir-se essa falta no conceito de aura e dizer: o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu significado ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de reprodução dizendo que liberta o objecto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das suas situações. Ambos os processos provocam um profundo abalo do reproduzido, um abalo da tradição que é o reverso da crise actual e a renovação da humanidade. Estão na mais estreita relação com os movimentos de massas dos nossos dias. O seu agente mais poderoso é o filme. O seu significado social também é imaginável, na sua forma mais positiva, e justamente nela, mas não sem o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do valor da tradição na herança cultural. Este fenómeno é mais evidente nos grandes filmes históricos.
Cada vez engloba mais posições no seu domínio. E quando, em 1927, Abel Gance exclamou entusiasticamente "Shakespeare, Rembrandt, Beethoven, farão filmes... Todas lendas, as mitologias e os mitos, todos os fundadores de religiões, sim, todas as religiões... esperam a sua ressurreição pela luz do filme e os heróis acotovelam-se às portas" (5), estava, provavelmente sem querer, a dirigir um convite a uma liquidação total.
Notas
1 Paul Valéry: Pièces sur l’art. Paris [sem data, pag. 105 (“La conquête de l'ubiquité")].
2 É evidente que a história da obra de arte abarca ainda mais: a história da Mona Lisa, por exemplo. O tipo e número de cópias que dela foram feitas nos séculos XVII, XVIII e XIX.
3 Precisamente porque a autenticidade não é reprodutível, o desenvolvimento intensivo de determinados processos de reprodução todos técnicos –forneceu o meio para a diferenciação e graduação autenticidade. Uma importante função do comércio da arte foi a desenvolver tal diferenciação. Este comércio tinha um interesse palpável distinguir uma placa de madeira para xilogravura, antes e depois de gravar de uma placa de cobre, e outras coisas deste tipo. Pode dizer-se que com a invenção da xilogravura se atacou pela raiz a qualidade da autenticidade mesmo antes do seu posterior florescimento a desenvolver. De facto, uma imagem medieval da Virgem na época em que era feita, ainda não era "autêntica"; tornou-se autêntica nos séculos vindouros e, principalmente, século XX.
4 A representação mais lamentável do "Fausto", apresentada por um teatrinho de província, tem, relativamente a um filme sobre o "Fausto", a vantagem de estar em concorrência ideal com a estreia em Weimar. E o que dos conteúdos tradicionais pode ser recordado no palco, deixa de ser explorado na tela, como o facto de o Mefistófeles de Goethe ser a representação do seu amigo da juventude, Johann Heinrich Merck, e outros.
5 Abel Gance: «Le temps de l’image est venu», in: L’art cinématografique. Paris 1927, pp. 94-96.

"O QUE É O ILUMINISMO?" (1784)

I. KANT
1. Definição do Iluminismo
O iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprios é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.

2. Dificuldade para o homem de sair do estado de menoridade
A preguiça e a vileza são as causas pelas quais tão grande parte dos homens, depois que a natureza há muito tempo os liberou da heterodireção (naturaliter minorennes), ainda permanecem de bom grado em estado de menoridade por toda a vida; e esta é a razão pela qual é tão fácil que outros se erijam como seus tutores. É tão cômodo ser menor! Se eu tiver um livro que pensa por mim, um diretor espiritual que tem consciência por mim, um médico que decide por mim sobre a dieta que me convém etc., não terei mais necessidade de me preocupar por mim mesmo. Embora eu goze da possibilidade de pagar, não tenho necessidade de pensar: outros assumirão por mim essa enjoada tarefa. De modo que a estrondosa maioria dos homens (e com eles todo o belo sexo) considera a passagem ao estado de maioridade, além de difícil, também muito perigosa, e provêm já os tutores que assumem com muita benevolência o cuidado vigilante sobre eles. Depois de tê-los em um primeiro tempo tornado estúpidos como se fossem animais domésticos e ter cuidadosamente impedido que essas pacíficas criaturas ousassem mover um passo fora do andador de crianças em que os aprisionaram, em um segundo tempo mostram a eles o perigo que os ameaça caso tentassem caminhar sozinhos. Ora, este perigo não é assim tão grande como se lhes faz crer, pois ao preço de alguma queda eles por fim aprenderiam a caminhar: mas um exemplo deste gênero os torna em todo caso medrosos e em geral dissuade as pessoas de qualquer tentativa ulterior.
É, portanto, difícil para cada homem particular desembaraçar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma segunda natureza. Ele chega até a amá-la e, no momento, é realmente incapaz de servir-se de seu próprio intelecto, pois nunca lhe foi permitido colocá-lo à prova. Regras e fórmulas, estes instrumentos mecânicos de um uso racional, ou melhor, de um abuso de suas disposições naturais, são os laços de uma menoridade eterna. Mesmo que deles conseguisse se soltar, mais não faria que um salto inseguro até mesmo sobre os mais pequenos buracos, pois não estaria treinado a tais movimentos livres. Portanto, apenas poucos conseguem, com a educação do próprio espírito, desembaraçar-se da menoridade e apesar de tudo caminhar com passo seguro.
Que, ao contrário, um público2 se ilumine por si próprio é coisa grandemente possível; ou melhor, se lhe for deixada a liberdade, é quase inevitável. Nesse caso, com efeito, se encontrarão sempre, até entre os tutores oficiais da grande multidão, alguns livres pensadores que, depois de terem sacudido de si o jugo da tutela, espalharão o sentimento da avaliação racional do próprio valor e da vocação de todo homem a pensar por si próprio. A este respeito há o fenômeno singular de que o público, que em um primeiro tempo foi colocado por aqueles sob tal jugo, os obrigue depois ele próprio a aí permanecerem, tão logo tenham a isso instigado aqueles de seus tutores que fossem eles próprios incapazes de qualquer esclarecimento. Semear preconceitos é tão perigoso exatamente porque terminam por recair sobre seus autores ou sobre os predecessores de seus autores. Por isso o público pode chegar ao esclarecimento apenas lentamente. Talvez uma revolução poderá, sim, determinar a liberação em relação a um despotismo pessoal e de uma opressão ávida de ganho ou de poder, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Ao contrário: novos preconceitos servirão da mesma forma que os antigos para colocar no andador a grande multidão de quem não pensa.

3. Condição essencial para o Iluminismo é a liberdade de fazer uso público da razão
Todavia, para esse esclarecimento não é preciso mais que a liberdade; e precisamente a mais inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer uso público da própria razão em todos os campos. Mas em todos os lugares ouço gritar: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas fazei exercícios militares! O intendente de finanças: não raciocineis, mas pagai! O clero: não raciocineis, mas acreditai! (Há apenas um único senhor no mundo3 que diz: raciocineis o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes, mas obedecei!). Aqui existe, em todo lugar, limitação da liberdade.
a. Uso público e uso privado da razão
Todavia, qual limitação é obstáculo para o Iluminismo, e qual não o é, ou melhor, até o favorece? Respondo: o uso público da própria razão deve ser livre em todo tempo, e apenas ele pode atuar o esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, ao contrário, pode muito freqüentemente sofrer estreitas limitações, sem que por isso o progresso do esclarecimento seja particularmente obstaculizado. Entendo por uso público da própria razão o uso que alguém faz dela, como estudioso, diante de todo o público dos leitores. Chamo, ao contrário, de uso privado da razão aquele que a um homem é lícito fazer dela em certa profissão ou função civil da qual é investido. Ora, para muitas operações que se referem ao interesse da comunidade é necessário certo mecanicismo, pelo qual alguns membros dela devem se comportar de modo puramente passivo em que mediante uma harmonia artificial o governo os induza a concorrer aos fins comuns ou ao menos a não contrastar com estes. Aqui, obviamente, não é permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Todavia, enquanto ao mesmo tempo estes membros da máquina governante se consideram como membros de toda a comunidade e, mais ainda, da sociedade cosmopolita, e são, portanto, na qualidade de estudiosos que com os escritos se dirigem a um público no sentido próprio da palavra, eles podem certamente raciocinar, sem com isso lesar a atividade à qual estão destinados como membros parcialmente passivos. Desse modo, seria bastante pernicioso que um oficial, ao qual foi dada uma ordem por seu superior, quisesse em serviço publicamente raciocinar sobre a oportunidade e a utilidade dessa ordem: ele deve obedecer. Mas é iníquo impedir que ele, na qualidade de estudioso, faça suas observações sobre erros cometidos nas operações de guerra e as submeta ao julgamento de seu público. O cidadão não pode se furtar a pagar os tributos que lhe são impostos; e uma crítica inoportuna de tais imposições, quando devem ser executadas por ele, pode até ser punida como escândalo (pois poderia induzir a desobediências generalizadas). Contudo, este não age contra o dever de cidadão se, como estudioso, manifestar abertamente seu pensamento sobre a inconveniência ou também sobre a injustiça destas imposições. Dessa forma, espera-se que um eclesiástico ensine o catecismo aos aprendizes e à sua comunidade religiosa segundo o credo da Igreja da qual depende, porque é com esta condição que ele foi assumido; mas, como estudioso, ele tem a plena liberdade e até a tarefa de comunicar ao público todos os pensamentos que um exame severo e bem intencionado lhe sugeriu a respeito dos defeitos daquele credo, e também suas propostas de reforma da religião e da Igreja. Nisso não há nada de que a consciência possa tornar-se culpada. Aquilo que ele ensina como parte de sua profissão, como funcionário da Igreja, ele de fato o expõe como algo em torno do qual não tem a liberdade de ensinar conforme suas próprias idéias, mas que tem a tarefa de ensinar segundo as instruções e em nome de um outro. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto e aquilo, e estas são as provas de que ela se vale. Toda a utilidade prática que pode derivar para sua comunidade, ele portanto a tirará dos princípios que ele próprio não subscreveria com plena convicção, mas a cujo ensinamento pode em todo caso se empenhar porque não é de modo algum impossível que neles não se encontre alguma verdade, e em todo caso, ao menos, neles não se encontra nada que contradiga a religião interior. Se, ao contrário, acreditasse encontrar aí algo que a contradiga, ele não poderia exercitar sua função com consciência; deveria demitir-se. O uso que um ministro de ensino oficial faz da própria razão diante de sua comunidade religiosa é, portanto, apenas um uso privado; e isso porque aquela comunidade, por maior que seja, é sempre apenas uma reunião doméstica; e sob este aspecto ele, como padre, não está livre e não o pode sequer ser, pois exerce um cargo que lhe vem de outros. Ao contrário, como estudioso que fala com os escritos ao público propriamente dito, isto é, ao mundo e, portanto, como eclesiástico no uso público de sua própria razão, ele goza de uma liberdade ilimitada de valer-se de sua própria razão e de falar por si mesmo. Que os tutores do povo (nas coisas espirituais) devam por sua vez permanecer sempre na menoridade é um absurdo que tende a perpetuar os absurdos.

4. Criar obstáculos contra o progresso das luzes é um crime contra a natureza humana
Contudo, uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia eclesial ou uma venerável “classe” (como ela se autodefine entre os holandeses), não teria por acaso o direito de obrigar-se por juramento a certo credo religioso imutável, para exercer de tal modo sobre cada um de seus membros e, por meio deles, sobre o povo uma tutela contínua e até para tornar eterna essa tutela? Eu digo que isso é de fato impossível. Tal contrato, dirigido a manter a humanidade para sempre longe de qualquer progresso ulterior no esclarecimento, é irritante e nulo de modo absoluto, mesmo que fosse sancionado pelo poder soberano, pelas Dietas imperiais e os mais solenes tratados de paz. Nenhuma época pode coletivamente empenhar-se com juramento a pôr a época sucessiva em uma condição que a coloque na impossibilidade de estender seus conhecimentos (sobretudo quando são tão necessários), de libertar-se dos erros e em geral de progredir no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja originária destinação consiste justamente nesse progresso; e, portanto, as gerações sucessivas estão perfeitamente legitimadas a rejeitar tais convenções como não autorizadas e ímpias. A pedra-de-toque de tudo aquilo que se pode impor como lei a um povo está no quesito: um povo pode impor a si próprio tal lei? Isso sim seria uma coisa possível, por assim dizer, na espera de uma lei melhor e por breve tempo determinado, com o fim de introduzir certa ordem, mas com a condição de que entrementes se deixe livre todo cidadão, sobretudo o homem de Igreja, de fazer sobre os defeitos da instituição vigente suas observações publicamente, em sua qualidade de estudioso, isto é, mediante seus escritos; e isso enquanto a ordem constituída se mantiver sempre em vigor até que as novas visões nessa matéria não tenham alcançado no público tanta difusão e crédito que os cidadãos, com a união de seus votos (mesmo que não de todos), estejam em grau de apresentar ao soberano uma proposta dirigida a proteger as comunidades que estivessem de acordo para uma mudança para melhor da constituição religiosa segundo suas idéias, e sem prejuízo para as comunidades que, ao contrário, pretendessem permanecer na antiga constituição. Mas entrar em acordo para manter em vigor, mesmo que apenas pela duração da vida de um homem, uma constituição religiosa imutável que ninguém possa publicamente pôr em dúvida, e com isso anular por assim dizer uma fase cronológica do caminho da humanidade para sua melhora e tornar essa fase estéril e por isso mesmo talvez até danosa para a posteridade, não é absolutamente lícito. Um homem pode, de fato, por sua própria pessoa, e também em tal caso apenas por certo tempo, diferir de iluminar-se sobre aquilo que ele próprio é destinado a saber; mas renunciar a isso para si e, mais ainda, para a posteridade, significa violar e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. Ora, aquilo que nem sequer um povo pode decidir a respeito de si próprio, menos ainda o pode um monarca a respeito do povo; com efeito, seu prestígio legislativo se funda precisamente sobre o fato de que em sua vontade ele resume a vontade geral do povo. Embora ele vigie para que toda verdadeira ou presumida melhora não contrarie a ordem civil, ele não pode de resto senão deixar seus súditos livres de fazer o que crêem necessário para a salvação de sua alma. [...] O monarca acarreta detrimento à sua própria majestade caso se intrometa nessas coisas, considerando que os escritos nos quais seus súditos colocam às claras suas idéias sejam passíveis de controle por parte do governo, tanto se ele faz isso invocando a própria intervenção autocrática e expondo-se à reprovação de que Caesar non est supra grammaticos,4 como, e com maior razão, se ele abaixa seu poder a ponto de sustentar o despotismo espiritual de algum tirano em seu Estado contra todos os outros seus súditos.

5. A época atual é “de iluminismo”, e não uma época “iluminada”
Se agora perguntarmos: nós, atualmente, vivemos em uma era iluminada? então a resposta é: não, e sim em uma era de iluminismo.Que na situação atual os homens tomados em massa já estejam em grau, ou que também possam ser colocados em grau de valer-se seguramente e bem de seu próprio intelecto nas coisas da religião, sem a guia de outros, é uma condição da qual ainda nos encontramos muito distantes. Mas que a eles, agora, esteja aberto o campo para trabalhar e emancipar-se para tal estado, e que os obstáculos à difusão do esclarecimento geral ou à saída da menoridade a eles próprios imputável pouco a pouco diminuam, disso temos, ao contrário, sinais evidentes. [...]
Um príncipe que não crê indigno de si dizer que considera seu dever não prescrever nada aos homens nas coisas de religião, mas deixá-los nisso em plena liberdade, e que, portanto, afasta de si também o nome orgulhoso da tolerância, é ele próprio iluminado e merece que o mundo e a posteridade reconheçam ser digno de elogio como aquele que por primeiro emancipou o gênero humano da menoridade, ao menos por parte do governo, e deixou livre cada um de valer-se de sua própria razão em tudo aquilo que é questão de consciência. [...] Este espírito de liberdade se estende também para o exterior, até o ponto em que ele deve lutar contra obstáculos exteriores suscitados por um governo que entende mal a si próprio. O governo, com efeito, tem em todo caso diante dos olhos um resplandecente exemplo que mostra que a paz pública e a concórdia da comunidade nada têm a temer da liberdade. Os homens se empenham por si mesmos para sair pouco a pouco da barbárie, contanto que não se recorra a instrumentos artificiais para nela mantê-los.

6. O Iluminismo deve se referir sobretudo às coisas de religião
Coloquei particularmente nas coisas de religião o ponto culminante do esclarecimento, isto é, da saída dos homens de um estado de menoridade que deve ser imputado a eles próprios; em relação às artes e às ciências, com efeito, nossos regentes não têm nenhum interesse de exercitar a tutela sobre seus súditos. Além disso, a menoridade em coisas de religião é entre todas as formas de menoridade a mais danosa e também a mais humilhante. Mas o modo de pensar de um soberano que favorece aquele tipo de esclarecimento vai ainda além, pois ele vê que até em relação à legislação por ele estabelecida não se corre perigo em permitir aos súditos fazer uso público de sua razão e de expor publicamente ao mundo suas idéias sobre um melhor arranjo da própria legislação, até criticando de modo aberto a existente. [...]

7. Um paradoxo: uma liberdade civil maior põe maiores limites à liberdade do espírito do povo
Todavia, também é verdade que apenas aquele que, iluminado ele próprio, não tem medo das sombras e ao mesmo tempo dispõe a garantia da paz pública de um exército numeroso e bem disciplinado, pode enunciar aquilo que uma república não pode arriscar-se a dizer: raciocinai o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui um estranho e inesperado curso das coisas humanas; como, de resto, em outros casos, considerando esse curso em tamanho grande, quase tudo nele parece paradoxal. Um maior grau de liberdade civil parece favorável à liberdade do espírito do povo, e todavia põe a ela limites intransponíveis; um grau menor de liberdade civil, ao contrário, oferece ao espírito o espaço para desenvolver-se com todas as suas forças. Portanto, se a natureza desenvolveu sob este duro invólucro o germe do qual ela toma o mais inteiro cuidado, isto é, a tendência e vocação para o livre pensamento, esta tendência e vocação gradualmente reage sobre o modo de sentir do povo (motivo pelo qual este, pouco a pouco, torna-se sempre mais capaz da liberdade de agir) e finalmente até sobre os princípios do governo, o qual percebe que é vantagem para si próprio tratar o homem, que doravante é mais que uma máquina, de modo conforme com a dignidade que ele tem.

I. Kant. Resposta à pergunta de uma revista berlinense
("O que é o Iluminismo?" - 1784).

Notas
1 “Tem a coragem de saber!” (Horácio, Epístolas I, 2, 40).
2 A expressão “o público” tinha no séc. XVIII três possíveis acepções. Significava, em contraposição ao indivíduo, a totalidade das pessoas reunidas em um certo lugar ou espaço (província ou Estado), ou o público dos leitores de um determinado escritor, e ainda o conjunto das pessoas que pertencem a uma época histórica.
3 Alusão a Frederico II da Prússia (1740-1786).
4 “O imperador não tem autoridade sobre os gramáticos”.
ACERCA DA ETERNIDADE DO MUNDO, CONTRA OS MURMURANTES

Santo Tomás de Aquino
Suposto, conforme a fé católica, que o mundo não foi desde sempre, como equivocadamente afirmaram alguns filósofos, mas que o mundo teve um começo em sua duração, segundo atesta a Sagrada Escritura, que não pode enganar-se, suscita-se porém a dúvida de se poderia ter sido desde sempre.
Para solucionar esta dúvida, há que começar por distinguir aquilo que nos une aos que negam que o mundo tenha sido desde sempre daquilo que nos separa desses mesmos.
Se se entende que algo além de Deus possa ser desde sempre, como se fosse possível algo eterno além d’Ele sem ser feito por Ele mesmo, tal hipótese implica um erro digno de abominação não somente por parte da fé mas também por parte dos filósofos, que afirmam e demonstram que tudo o que de alguma maneira é não pode ser senão porque é causado por Aquele que possui o ser em grau máximo e perfeito.
Se, por outro lado, se entende que algo seja desde sempre sendo, ademais, causado por Deus em tudo o que é, então há que perguntar se tal afirmação se pode sustentar. Se se diz que é impossível, será ou porque Deus não pode fazer algo que seja desde sempre, ou porque tal não pode ser feito em si mesmo, ainda que de seu o pudesse fazer Deus.
Com o primeiro sentido estão todos de acordo: sem dúvida Deus pode fazer algo que seja desde sempre, em razão de sua infinita potência. Resta averiguar, portanto, se é possível que seja feito algo que sempre tenha sido.
Se se disser que isto é impossível, não o será senão por um de dois motivos: ou por falta de potência passiva, ou por repugnar à razão.
No primeiro sentido se pode dizer que, antes de o anjo ter sido feito, não podia ser feito, por não ter sido precedido de nenhuma potência passiva, já que não foi feito de matéria prévia. E, contudo, Deus podia fazer o anjo, e podia fazer que o anjo fosse feito, porque o fez, porque o anjo foi feito.
Assim entendido, portanto, há que conceder simplesmente, segundo a fé, que o que é causado por Deus não pode ser desde sempre, porque afirmá-lo equivaleria a dizer que a potência passiva foi desde sempre, o que é herético. Mas disto não se segue que Deus não possa fazer que algum ente seja feito desde sempre.
No segundo sentido, diz-se que algo não se pode fazer por repugnar à razão, assim como não se pode fazer que a afirmação e a negação sejam simultaneamente verdadeiras, ainda que, segundo alguns, Deus o possa fazer. Outros, no entanto, dizem que Deus não poderia fazer tais coisas, porque tais coisas não são nada.
E todavia é claro que Deus não pode fazer que tais coisas sejam feitas, porque a proposição que afirma isto se destrói a si mesma.
Se porém se afirmar que Deus pode fazer que tais coisas sejam feitas, não é herética a afirmação, conquanto seja, como julgo, falsa, assim como o afirmar que o passado não tenha sido traz em si uma contradição.
Donde S. Agostinho dizer no livro contra Fausto
[1]: “Quem assim diz: Se Deus é onipotente, que faça que o que foi não tenha sido, não entende que com isto diz: Se é onipotente, que faça que o que é verdadeiro, ao mesmo tempo que é verdadeiro, seja falso.”
E no entanto alguns grandes disseram piedosamente que Deus pode fazer que o pretérito não tenha sido o pretérito; e isto não foi reputado herético. É necessário investigar, então, se repugna à razão a afirmação conjunta das duas teses seguintes: que algo seja causado por Deus e, não obstante, seja desde sempre. E, qualquer que seja a verdade com respeito a isto, não será herético dizê-lo, porque Deus pode fazer que algo causado por Deus tenha sido desde sempre.
Não obstante, creio que, se tal repugnasse à razão, seria falso. Se porém não repugna à razão, não somente não é falso, mas também é impossível que seja de outro modo, e errôneo pois afirmá-lo. Pois, como é próprio à onipotência de Deus o exceder a toda a inteligência e virtude, derroga claramente a onipotência de Deus quem diz que se pode ver algo nas criaturas que não possa ser feito por Deus. E não vale contra-argumentar com o caso dos pecados, pois que esses, enquanto tais, nada são.
Toda a questão, por conseguinte, consiste nisto: se ser criado por Deus segundo toda a substância e não ter princípio de duração são proposições que se excluem mutuamente ou não. E que não se excluem demonstra-se da maneira que se segue.
Se se excluem, não pode ser senão por uma de duas razões, ou por ambas: ou porque é necessário que a causa agente preceda em termos de duração a seu efeito, ou porque é necessário que o não-ser preceda em duração ao ser, pois que a criação de Deus foi feita do nada. Em primeiro lugar, portanto, deve-se mostrar que não é necessário que a causa agente, ou seja, Deus, preceda em duração a seu efeito, se assim Ele o quiser.
Primeiramente assim: nenhuma causa que produz seu efeito de modo instantâneo precede necessariamente a seu efeito em duração. Deus porém é causa que produz seu efeito não por moção, mas instantaneamente. Não é necessário, pois, que preceda em termos de duração a seu efeito.
O primeiro é patente por indução em todas as mudanças instantâneas, como a iluminação e coisas assim. Pode, não obstante, ser provado pela razão do modo que se segue. Em qualquer instante em que se diga que algo é, pode-se dar o princípio de sua ação, como se vê em todas as coisas geráveis, visto que, no instante mesmo em que começa o fogo, começa o esquentamento.
Mas na operação instantânea, igualmente, porém mais ainda, o princípio e o fim são a mesma coisa, como em todos os indivisíveis. Por conseguinte, em qualquer instante em que se dê o agente produzindo seu efeito instantaneamente, pode dar-se o término de sua ação. Mas o término da ação é simultâneo à própria coisa feita. Logo não repugna à razão afirmar que a causa que produz seu efeito instantaneamente não precede em termos de duração a esse seu efeito.
Repugnaria, em contrapartida, no caso das causas que produzem seus efeitos mediante moção, porque é necessário que o princípio da moção preceda a seu fim. E, porque os homens estão acostumados a considerar antes as causas que o são por moção, não compreendem facilmente que a causa agente não preceda em termos de duração a seu efeito. E é por isso que muitos inexperientes, sem considerar todos aspectos da questão, o afirmam com demasiada facilidade.
Não se pode objetar contra esta razão que Deus é causa agente voluntária, porque não é necessário que a vontade preceda em duração a seu efeito, e nem sequer o agente voluntário, a não ser que obre a partir de deliberação, o que de modo algum convém digamos de Deus.
Ademais, a causa que produz toda a substância de uma coisa não pode menos no produzir toda a substância que a causa que produz a forma na produção da forma: antes, poderia muito mais, porque não produz eduzindo da potência da matéria, como sucede com aquela que produz a forma.
Mas um agente que produz somente a forma pode fazer que a forma por ele produzida seja tanto tempo quanto ele próprio, como se vê claramente no caso do sol ao iluminar. Logo, com muito mais razão Deus, que produz toda a substância da coisa, pode fazer que seu efeito seja em cada momento em que Ele seja.
Ademais, se há alguma causa cujo efeito procedente não possa dar-se no mesmo instante, isso não é senão porque a essa causa falta algum complemento: de fato, a causa completa e seu efeito são simultâneos. Mas a Deus nunca falta complemento algum. Logo, seu efeito sempre se pode dar instantaneamente. E, assim, não é necessário que preceda em termos de duração a seu efeito.
Ademais, a vontade do que quer não lhe diminui nada o poder, especialmente se se trata de Deus. Mas todos os que refutam as razões de Aristóteles, pelas quais se prova que as coisas foram feitas por Deus desde sempre, uma vez que o mesmo sempre faz o mesmo
[2], dizem que tal assim seria, não fosse Deus agente voluntário. Logo, tratando-se embora de agente voluntário, nem por isso se segue não possa ele fazer que seu efeito seja desde sempre.
E, assim, é claro que não repugna à razão dizer que a causa agente não precede a seu efeito em duração, porque Deus não pode fazer que sejam coisas que repugnam à razão.
Resta agora ver se repugna à razão que algo feito nunca tenha não sido, por ser necessário que seu não-ser preceda em termos de duração a seu ser, dado que se afirma ter sido feito do nada.
Mas tal em nada repugna à razão, o que se mostra pelo que diz Anselmo no Monologio, cap. 8, quando expõe o modo por que a criatura se diz feita do nada. “A terceira interpretação”, diz ele, “pela qual se diz que algo é feito do nada, deve-se a compreendermos que algo de fato é feito, sem no entanto existir algo de que seja feito.”
Em sentido semelhante se diz que quem se entristece sem causa se entristece por nada. Segundo este sentido, portanto, se se entende o que acima se disse — que, salvo a própria suma essência, todas as coisas que dela própria procedem são feitas do nada, isto é, não são feitas de algo — não se segue nada de inconveniente.
E claro está que, segundo esta interpretação, não se afirma nenhuma ordem para o que é feito do nada, como se fosse necessário que, antes de algo ser feito, nada tenha sido, e posteriormente fosse algo.
Ademais, suponhamos que permaneça a mesma ordem com respeito ao nada que se encontra na proposição acima, de sorte que seu sentido seja o de a criatura ser feita do nada, ou seja, depois do nada: o termo “depois” importa numa ordem absoluta.
Mas a ordem é múltipla: a saber, de duração e de natureza. Se pois do comum e universal não se segue o próprio e particular, não será necessário, pelo fato de se afirmar que a criatura é depois do nada, que o nada seja anterior em termos de duração, e que só depois haja algo; basta que o nada seja naturalmente anterior ao ser, porque por natureza sempre é próprio a alguma coisa o que lhe convém em si mesma, com anterioridade ao que não tem senão por outro.
Ora, a criatura não tem o ser senão de outro; entregue a si mesma, portanto, e considerada em si mesma, nada é, donde naturalmente o nada lhe convir primeiro que o ser. Nem é preciso que por isso seja simultaneamente nada e ente, pois que não precede segundo a duração: se a criatura sempre foi, não se afirma porém que alguma vez nada tenha sido, e sim que sua natureza é tal, que não seria nada se fosse entregue a si mesma, assim como, se supuséssemos que o ar sempre fosse iluminado pelo sol, seria preciso dizer que o ar é feito luminoso pelo sol.
E, como tudo o que se faz é feito do incontingente, ou seja, daquilo que não pode ser ao mesmo tempo que aquilo que se diz fazer-se, deve-se dizer que o lúcido se faz do não-lúcido ou tenebroso: não no sentido de que alguma vez tivesse sido não-lúcido ou tenebroso, mas no de que porque assim seria, se fosse entregue a si mesmo pelo sol.
E tal é mais expressivamente manifesto nas estrelas e órbitas que são sempre iluminadas pelo sol.
Claro está, pois, que em nada repugna à razão dizer que algo é feito por Deus e que nunca não tenha sido.
Houvesse qualquer coisa que lhe repugnasse, seria assombroso que não a tivesse visto Agostinho, pois teria sido uma via eficacíssima para refutar a eternidade do mundo, a qual ele impugna com muitas razões nos livros 11 e 12 d’A Cidade de Deus. Como, então, deixou passar totalmente esta?
Ele parece, antes, insinuar que em tal não há contradição, quando, falando dos platônicos, diz no livro X, cap. 31, d’A Cidade de Deus: “Acharam porém maneira de entendê-lo, dizendo que não é de um início do tempo, mas da substituição. Assim como, dizem, se o pé estivesse sempre, desde a eternidade, no pó, debaixo dele sempre estaria a pegada, e ninguém duvidaria de que esta é feita pelo que pisa, sem que no entanto nenhum deles fosse anterior ao outro, conquanto um fosse feito pelo outro, assim também, dizem, o mundo e os deuses nele criados sempre foram, pois que sempre foi Aquele que os fez, sendo, não obstante, feitos.”
E em nenhum lugar disse ser isto inconcebível, procedendo de outro modo contra eles. Também diz, no livro XI, cap. 4: “Aqueles que confessam que o mundo foi feito por Deus, negando porém que tenha tido um início de tempo, senão somente de criação, de modo tal que de maneira dificilmente inteligível tenha sido feito desde sempre, parecem, pelo que dizem, defender a Deus de uma fortuita temeridade.”
A causa por que é dificilmente inteligível já se disse no primeiro argumento.
Também é admirável como tão nobilíssimos filósofos não viram a suposta repugnância. Com efeito, disse Agostinho no mesmo livro, cap. 5, falando contra aqueles que se mencionaram na citação precedente. “Tratamos pois com aqueles que conosco afirmam ser Deus incorpóreo e criador de todas as naturezas distintas d’Ele”, acerca dos quais mais abaixo acrescenta: “Estes filósofos sobrepujaram os demais em nobreza e autoridade.”
E isto é evidente também para aquele que considera com diligência a tese dos que postularam que o mundo sempre foi, pois que, não obstante, o afirmam feito por Deus, sem nisto perceber nada que repugne à razão. Por conseguinte, aqueles que tão sutilmente percebem repugnância à razão são homens sábios, e com eles nasce a sabedoria
[3].
Mas, como algumas autoridades parecem favorecê-los, é preciso demonstrar que lhes proporcionam frágil apoio.
Diz pois o Damasceno no livro I, cap. 8: “Aquilo que é tirado do não ser para o ser não é apto por natureza para ser coeterno d’Aquele que não tem princípio e que sempre é.”
[4] Também Hugo de São Vitor diz, no início do livro Acerca dos Sacramentos: “A virtude inefável da onipotência não pode ter tido junto de si algo coeterno, de que se teria ajudado para criar.”[5]
Mas a explicação destas autoridades e de outras semelhantes fica clara pelo que diz Boécio no último livro de Acerca da Consolação: “Não pensam devidamente alguns que, ouvindo o dito de Platão de que o mundo não teve início temporal nem terá fim, pensam que deste modo o mundo criado se torna coeterno do Criador. Uma coisa é ser levado através de uma vida interminável, que é o que Platão atribuiu ao mundo; outra coisa é a presença de uma vida interminável ser toda igualmente abarcada, o que, claro está, não é próprio senão da mente divina.”
[6]
Donde estar claro também que tampouco procede o que alguns objetam, a saber, que a criatura se igualaria a Deus em termos de duração; de modo algum algo pode ser coeterno de Deus, porque nada pode ser imutável senão Deus mesmo, o que se patenteia pelo que disse Agostinho n’A Cidade de Deus, livro 12, cap. 15: “O tempo, porquanto transcorre mutavelmente, não pode ser coeterno da eternidade imutável. E por isso, conquanto a imortalidade dos anjos não transcorra no tempo, nem seja passada como se já não fosse, nem futura como se ainda não fosse, seus movimentos, de que procedem os tempos, passam de futuros a pretéritos. E, assim, não podem ser coeternos do Criador, em cujo movimento é preciso dizer que não é nem foi o que já não seja, nem será o que ainda não for.”
Semelhantemente diz no livro VIII de Acerca do Gênesis: “Porque aquela natureza da Trindade é totalmente imutável, por isso mesmo é de tal modo eterna, que nada pode ser que lhe seja coeterno.”
[7] E disse palavras semelhantes no livro XI das Confissões[8].
Em seu favor acrescentem-se razões que também os filósofos trataram e resolveram, entre as quais a mais difícil é a da infinidade de almas: porque, se o mundo sempre foi, é necessário que agora haja infinitas almas. Mas isto não vem ao caso, porque Deus poderia ter criado o mundo sem homens nem almas; ou então poderia também ter feito o homem quando o fez, e ter feito todo o resto do mundo desde toda a eternidade; e assim não ficariam, depois dos corpos, infinitas almas. Ademais, ainda não se demonstrou que Deus não possa fazer que sejam infinitas em ato.
Há outras razões de cuja resposta me abstenho aqui, já porque foram respondidas noutro lugar, já porque algumas delas são tão débeis, que com sua debilidade parecem acrescentar probabilidade ao lado contrário.
Notas:
[1] [N. da P.] Santo Agostinho, Contra Faustum, XXVI, cap. 5.
[2] [N. da P.] V. Aristóteles, De Generatione et Corruptione, II, cap. 10, 336a, 27-28.
[3] [N. da P.] Quanto a esta passagem, nota Robert T. Miller: “Aqui ele está provavelmente fazendo alusão ao Livro de Jó 12:2, em que diz Jó: ‘Logo, só vós sois homens sábios, e convosco morrerá a sabedoria?’ A diferença entre ‘nasce’ (oritur) e ‘morrerá’ (morietur) é pequena.”
[4] [N. da P.] São João Damasceno, De Fide Orthodoxa, livro I, cap. 8.
[5] [N. da P.] Hugo de S. Vitor, De Sacramentis I-1, cap. 1.
[6] [N. da P.] Boécio De Consolatione, livro V, 6.
[7] [N. da P.] Santo Agostinho, Super Genesis ad Litteram, livro VIII, cap. 23.
[8] [N. da P.] Santo Agostinho, Confissões, livro XI, cap. 30.

A ALEGORIA DA CAVERNA

Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior. A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa.
Entre ela e os prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes.
Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas.
Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda luminosidade possível é a que reina na caverna.
Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigi ndo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria.
Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade.
O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que liberta o filósofo
e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espancam e matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1999. (p. 46-47)
Sejam bem vindos ao Curso!!!
É isso aí pessoal!!! Depois de mais um longo ano de trabalho, estamos aqui novamente com o Curso de Introdução à Filosofia e à Sociologia! Este é o espaço destinado ao curso, onde vocês poderão se informar semanalmente sobre o mesmo, assim como visualizar textos complementares e sugestões de livros e filmes sobre os temas trabalhados em sala de aula.
Além do blogger, vocês terão acesso a outro espaço para tirar suas dúvidas e deixar sugestões, no seguinte endereço eletrônico: oficinadosabersc@gmail.com
Esperamos que essa segunda edição propicie a vocês o prazer de conhecer um pouco mais sobre o pensamento filosófico e sociológico, algo que também esperamos dividir, mais uma vez, com todos que fizerem o curso.
Grande abraço e até lá!
OFICINA DO SABER - ALEX E ELBER

Sobre as inscrições e outras informações

Segue abaixo algumas informações de extrema importância para a realização da sua inscrição, assim como outras, referentes ao funcionamento do curso:

1) As inscrições serão encerradas no dia 28 de agosto de 2008, não havendo possibilidade de prorrogação.

2) Se houver mais de 100 inscrições para o curso, abriremos somente mais uma turma às terças-feiras, no mesmo horário, em função da necessidade de abrigarmos confortavelmente todos os participantes do evento. Por esse motivo, as vagas são limitadas.

3) O curso emitirá certificado de conclusão para todos os participantes que comparecerem, no mínimo, a 70% das aulas.

Grande abraço e até lá!
OFICINA DO SABER - Alex e Elber

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